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Filho de peixe sabe voar

Por Jornal Sporting
11 Jun, 2015

Perfil de Vítor Damas, um dos melhores guarda-redes portugueses de sempre

Todos erram. “Jogava pela Selecção júnior contra a Checoslováquia na Holanda. Bati mal o pontapé de baliza e a bola foi parar aos pés do avançado deles...”. Mas nem todos dão a volta aos erros da mesma maneira, com a mesma capacidade de reacção. Essa faceta está reservada a seres cujas características são especiais. “...Assim que ele recebeu a bola rematou. Vi a bola passar-me por cima. Sem outro recurso, voei na direcção da baliza e consegui defender”. Foi a melhor defesa de e para Vítor Damas, sem contar com o cabeceamento de Eusébio, em 1973, que ainda não tinha sido defendido no momento em que o então jovem guarda-redes fazia tal consideração.

Largo do Leão, Estefânia, Lisboa. Uma pedra do lado esquerdo e outra à direita. Não era o mais pesado, bem pelo contrário. Uma excepção às regras do futebol de rua. A baliza estava-lhe sempre reservada, mesmo que fosse o ataque a sua grande ambição. Mas entre jogar a guarda-redes ou não jogar, preferiu a primeira. Daí até ao Clube do coração, foi um pequeno pulo, daqueles abstractos, que se dão com os pés no chão. “Diz o Sr. Calado que não há fruto sem raízes e é preciso que estas se solidifiquem. Ora eu quero que as minhas estejam bem presas ao chão”, dizia Damas, esperando pacientemente pela hora de chegar à equipa principal, o que conseguiu em 1966, tinha 19 anos. Até lá, o pequeno Vítor, por vezes cansado e a dizer a Travassos “já chega sôr Zé”, não confundia a elegância que portava em campo com a falta de empenho. Fizesse chuva ou sol, por vezes na lama, atirava-se à bola no pelado à porta da 10 A, da mesma forma que o fez mais tarde no Estádio. Chegou mesmo a ser considerado o melhor em campo numa derrota por 5-1 quando ainda era jovem. 

Para os dias de hoje, outro exemplo é pertinente para os mais novos e respectivos pais. Vítor Damas era um aluno exemplar. O futebol não o impediu disso. “Era um aluno cumpridor. O meu pai nunca me fez ameaças ou proibiu de jogar. Exigia, sim, o cumprimento das minhas obrigações. Aliás, foi ele que me ensinou a dar os primeiros toques, querendo talvez fazer de mim o jogador que ele não pôde ser”, afirmava o internacional português sobre o pai, um jogador que “não foi de nomeada apenas porque não calhou”. Ainda assim, registe o nome: António Damas de Oliveira. Casado com Maria Rita Damas, natural de Lousal, na fronteira entre os distritos de Setúbal e Beja. Junto ao rio Sado e às minas, a 15 quilómetros de Alvalade, mas do Alentejo, era aqui que Vítor Damas passava as suas férias de Verão na infância, nas calmas planícies, não havendo “lugar a grandes aventuras”. Talvez desta melancolia, combinada com a azáfama de Lisboa, tenha surgido a principal razão pela paixão que o guardião tinha por viagens. Provavelmente, a necessidade de mudar de ares. No seu ‘Espadinha’, as ‘voltinhas’ por esse Portugal fora eram frequentes. Quando lhe perguntaram se era capaz de se aventurar numa viagem interplanetária, respondeu: “Por que não? O perigo atrai-me. Não se esqueçam de que sou guarda-redes”.

Para Vítor Damas, a vida era muito mais do que defender uns remates. Para além das viagens, também tinha os seus gostos naturais por películas, leitura ou música. Era apreciador de um tal Dino Segre, mais conhecido no mundo da escrita e do jornalismo por Pitigrilli, imortalizado por frases como: “os homens que amam uma só mulher são como os fósforos amorfos que têm a infelicidade de só se acenderem na própria caixinha”; mas também do cantor Tom Jones, célebre pelo tema ‘It’s not Unusual’ (‘Não é Incomum’, em português). Uma canção que até nem fica bem à grandeza de Vítor Damas, autor de diversos feitos raros, como a realização de 456 partidas de ‘leão’ ao peito, só ultrapassado por Hilário (494), ou a longevidade alcançada ao serviço da Selecção – onde, apesar de ter vestido a camisola das ‘quinas’ apenas por 29 vezes, fê-lo entre 1969 e 1986, uma diferença temporal jamais igualada por qualquer outro futebolista luso. 

A opção pelo Racing Santander em detrimento do FC Porto na época de 1975/1976, numa operação conjunta com o Presidente ‘verde e branco’ João Rocha, acabou por prejudicá-lo na Selecção – o então seleccionador nacional e treinador do FC Porto, José Maria Pedroto, acabou por afastá-lo das convocatórias, também suportado pela qualidade do outro guarda-redes português, Bento. Ainda assim, pela equipa nacional – onde regressou mais tarde para o Euro 84 e para o Mundial 86 – algumas estórias ficaram, como os dois beijos recebidos do ‘matulão’ capitão jugoslavo, após troca de galhardetes. Uma reacção natural nos países balcânicos, mas que deixou o guardião português “vermelho que nem um pimento”. 

Se fotos houvesse desse momento, com certeza fariam parte da vasta colecção que Vítor Damas tinha de recortes de jornais, “mais do que notas de Banco”, dizia, apesar de se considerar um homem poupado e, acrescente-se, corajoso – como ficou demonstrado na sua resposta a uma pergunta feita no início da carreira. O que lhe mete medo? “Na vida nada me mete medo. Nem o avançado mais perigoso! O único receio que sinto é o da morte, mas essa já está além da vida”.

No próximo domingo, a partir das 17h, venha a Alvalade homenagear a figura de Vítor Damas no SCP Legends, jogo cujas receitas reverterão para a Fundação Sporting.