Luís Vidigal concedeu a sua primeira grande entrevista após o regresso ao Clube.
SPORTING – Como é que o Luís Vidigal nasceu para o futebol?
LUÍS VIDIGAL – O meu pai encontrou no futebol a forma de satisfazer os filhos. Pertenço a uma família numerosa, somos 12 irmãos – oito rapazes e quatro raparigas. Vivemos tempos difíceis ao fugir da guerra em Angola e não era fácil para um pai encontrar solução para satisfazer tantos filhos, em altura de festas de família como o Natal. A bola conseguia resolver esses problemas.
A determinada altura, percebemos que tínhamos algum jeito, daí começarmos a organizar torneios de bairro, a construirmos o nosso próprio campo de futebol, em Elvas, num terreno baldio, e a pedir «emprestadados» uns barrotes de madeira para fazermos as balizas. Foram tempos espectaculares e é com alguma tristeza que, hoje, quando volto a Elvas, já não encontro esse campo de futebol.
O facto de a sua família ter vindo de Angola para uma cidade como Elvas contribuiu para a vossa capacidade de superação?
Sem dúvida. A oferta era pouca e embora havendo essa oferta, com muitas dificuldades poderíamos alcançá-la. Mas, a capacidade de nos superarmos está relacionada com o fazermos tudo do nada. Essa é a imagem da família Vidigal. A nossa força interior consegue ultrapassar as barreiras que, para a maioria, são intransponíveis.
Como é que surgiu o Sporting na sua vida?
O Sporting é paixão, é acreditar e também está relacionado com a educação que recebemos, de honrarmos aquilo que escolhemos e não nos deixarmos abalar por um mau resultado, ou por não ter conquistado este ou aquele título. Nunca pensei poder representar o Clube e à medida que fui crescendo e apercebendo-me de que provavelmente até poderia lá chegar, a vontade foi crescendo de tal forma que, no dia em que me foi apresentada a proposta para vir para o Clube, não me preocupei com mais nada. Queria pura e simplesmente representar o Sporting, não queria saber do tempo de contrato, dos valores, não me interessava rigorosamente nada.
Esse dia é recordado de que forma?
Foi cuidadosamente preparado. Tive conhecimento quando já estava tudo praticamente feito. Quando as coisas são anunciadas com muita antecedência, pode criar-se ansiedade. Foi uma surpresa muito grande. Quando me perguntaram se queria vir para o Sporting, respondi: essa pergunta não se faz, é já. Foi muito bom, foi o virar da minha carreira, algo que tanto desejava e que, felizmente, se realizou.
Para um menino que viveu com dificuldades, o chegar ao Sporting foi como um deslumbramento, o realizar de um sonho?
Sem dúvida. O ter uma estrutura familiar forte ajudou-me bastante, porque foi um salto muito grande. Foi difícil até de acreditar que estava no Sporting, mas a família, como sempre, ajudou-me bastante.
Quando chegou ao Sporting, diziam que vinha para substituir o Oceano. Foi uma grande responsabilidade?
Foi um risco muito grande. As responsabilidades aumentaram, porque não é fácil substituir alguém como o «meu capitão». Ele continua a ser, até hoje, o meu capitão.
Quem foram os seus primeiros ídolos no Sporting?
Só posso ter um e vai ser sempre esse: o «meu capitão», o Oceano. Sempre me identifiquei com o Oceano e ele ajudou-me muito quando vim para o Sporting. Há também um jogador que não é da minha geração, de quem gosto muito e com o qual sou unha com carne, que é o Manuel Fernandes.
Veio sozinho para Lisboa?
Sim, mas como tinha estado um ano no Estoril, já conhecia alguma coisa. Mas, a ligação a Elvas era tão forte que, nesse primeiro ano, íamos todas as folgas a Elvas. Eu e o Toni, jogássemos onde jogássemos, em todas as folgas regressávamos a Elvas.
Sendo membro de uma família numerosa, como se sentiu ao vir viver sozinho para Lisboa e enfrentar uma realidade completamente diferente?
No início, foi muito triste e era importante estar envolvido no treino e com os colegas. Evidentemente, resolvíamos as coisas de uma forma inteligente, convidando amigos para irem lá a casa para almoçar, ou ver filmes. Foram tempos difíceis, mas nunca deixei que isso interferisse no trabalho. Daí termos feito um trabalho interessante e o Sporting ter mostrado interesse em nós.
Qual foi o seu primeiro jogo oficial com a camisola do Sporting?
Um FC Porto-Sporting e fui utilizado a lateral-esquerdo. Sempre ao serviço do Clube, na esquerda, ou na direita. Antes disso, o melhor momento que tive e no qual senti que era do Sporting foi no estágio da Holanda. Cinco dias antes da partida para estágio estava em Alvalade, ainda sem saber qual o meu destino. Já tinha contrato assinado, mas não sabia se ia fazer parte do plantel e não tinha informações. A equipa estava preparada para viajar para a Holanda, o autocarro já estava preparado para a levar, e houve alguém que passou por mim e me perguntou o que ia fazer.
Respondi que não sabia e fui perguntar a quem de direito, que me disse que ia para a Holanda. Fui a correr para casa, fiz a mala rapidamente e fui todo feliz para o aeroporto. Viajámos e, ao quinto dia de estágio, o mister Carlos Queirós chamou-me ao quarto dele e disse-me: “É só para te dar os parabéns e dizer que fazes parte do plantel do Sporting, continua a treinar da mesma forma”. Esse foi um momento muito importante, foi tirar alguma pressão que sentia e deu-me tranquilidade. Tinha 22 anos. Um miúdo que há pouco tempo estava onde estava, assinar pelo Sporting e ser escolhido para fazer o primeiro jogo da época e logo contra o FC Porto, nas Antas, levou-me a pensar que se calhar tinha algum valor. Foi fantástico. O Sporting é um Clube diferente e superior a todos os outros.
A carreira de um jogador não é feita apenas de bons momentos. Como é que um jogador reage aos assobios dos sócios e dos adeptos?
Nem toda a gente consegue suportar os assobios, mas o que posso dizer é para que os jogadores continuem a trabalhar, sempre no máximo. Se reagisse de maneira diferente desta, às vezes que fui assobiado e contestado, não tinha chegado onde cheguei, não tinha conquistado o título de campeão nacional pelo Sporting, nem vencido as taças que venci, não tinha jogado num dos melhores campeonatos do Mundo e não tinha ido à selecção. São situações que, infelizmente, acontecem e que não conseguimos controlar, porque as reacções externas são temporárias. Há momentos bons e maus e os jogadores têm de entender que hoje estão a ser assobiados e que amanhã vão ser aplaudidos.
Depois da minha saída do Sporting, recordo-me de que estive a fazer recuperação de uma lesão e corria à volta do relvado do antigo Estádio José Alvalade e a equipa principal do Sporting estava a treinar. Ficava constrangido porque os sportinguistas me aplaudiam e não aplaudiam a equipa. Nessa altura, pensei: o futebol é estranho, pessoas que me assobiavam, agora aplaudem-me e os outros estão de parte.
O trajecto da antiga porta 10-A até ao campo de treinos chegou a ser doloroso?
Muito, mas comento com colegas daquele tempo que aquilo fazia bem, era como um «abre olhos». Esta conversa não é só feita entre antigos jogadores, mas também com dirigentes que hoje fazem parte do Clube. Eles próprios dizem sentir saudades daquele trajecto do Estádio até ao campo de treinos. Hoje, há outros métodos para chamar a atenção dos jogadores, há que lhes dar maior responsabilidade, para perceberem que estão a representar um Clube com a grandeza do Sporting.
AA